14 de abril de 2008

O voo da solução.

O Passageiro aguarda a chamada e considera o fim da viagem que se depara. Esta é viagem que, decidido, sabe, quer fazer, e esta é viagem do regresso, da renovação, da libertação, talvez.

Não se pode, nesse momento, evitar a invasão do desconforto que, perante a perspectiva do combate, instalada, se lhe apresenta, aqui, pela forma incómoda da antecipação das formalidades rituais já, em si, creditadas. Cumpridas estas o passageiro instala-se o mais que pode no local que lhe foi designado e solicita, como em contra ritual da solução, um artifício que acalme a tensão manifesta num crescendo crescente ; o voo vai iniciar-se.

Os motores arrancam, o aparelho inicia-se o movimento na pista. Lento, inicialmente, rápido acelera-se até à suspensão nesse momento em que, sempre, transita e se toma nas alturas, como que desfazado, a olhar o lá em baixo, perigosamente em baixo.

O passageiro sempre receava - nessa estação - um congelar no beatífico lugar.

O zumbido adentra os ouvidos, toma o cérebro que o arrasta todo, perigosamente todo, como que num lugar de turbilhão caótico onde o passageiro sente a ameaça da aniquilação, a ameaça de morte.

A morte é palavra forte
tão estafada de desnorte ...

- estribilha em si o passageiro.

Este é um efeito ordinário. – pensa ; enquanto maquinalmente tapa os ouvidos nos dedos tomados em gesto de contenção, ritual que tão bem conhece.

O turbilhão passa e é já como que outra paisagem que, funda, entre as nuvens, vai desfilando, majestosa, pela janela do passageiro contemplativo já ateado em torpor de álcool e lassidão.

No entanto, algo pesa no âmago desta leveza que flui e é como um sentimento de terror que paira, indefinível, sem que o passageiro lhe encontre os sinais da constatação. Que será este desconforto, que nome lhe atribuir ? Em vão o seu olhar se dirige ao interior do avião numa busca que se inicia desse aperto que desconforta, inquieto. É como que uma busca no interior em que o passageiro faz por creditar semelhança que tirar do comportamento dos outros passageiros.

Estes conversam despreocupados. Dormem uns, conversam outros, lê, um ou outro, alguns passeiam o tédio no écran de televisão que projecta um artificio de corpos maquinados que representam, talvez ; como que formas de presença reconfortante, que, ao invés, vão no passageiro fazendo crescendo dessa ausência intranquila.

É cada vez mais forte a impressão que paira como onírico pressentimento da tempestade, e esta, não se larga mais do passageiro em torpor ; um crescendo fundo, oculto mas presente, como que uma falta instalada.

Uma artificiosa hospedeira passa no momento e o passageiro interroga-a sobre a naturalidade do curso ao que esta faz por retorquir assegurando a conformidade, do mesmo. Porém, nos olhos agudos do passageiro, é impressionada a constatação de uma sombra – um funcionamento que é artificial, mais, artificioso - e que, efectivamente, este, encontra no olhar da hospedeira que evita as explicações detalhadas.

É, aos olhos do passageiro, a confirmação da anomalia pressentida e que, imediatamente, se faz anunciar por forma de forte turbulência.

A hospedeira desapareceu e os outros passageiros ostentam agora olhares de inquirição perturbada que são como olhares que se interrogam da actual conformidade ao comportamento que deles será – eventualmente - esperado.

Correm – os olhares - o corredor de janelas alinhadas em busca de referências, sinais de reconforto, em busca da marca do reconforto, que, julga o passageiro, se manifestaria a seus (deles) olhos pela presença da hospedeira e do seu ar artificioso.

De súbito, em crescendo de tensão de sabor ensaiado sente-se o estalido metálico de iniciação da aparelhagem sonora do aparelho. Nenhuma voz ou mensagem é propagada das colunas que, durante alguns segundos, apenas, transmitem um fundo característico de chuva mecânica para, logo depois, os sons de uma conversa em surdina surpreendida, que se estendem, incompreensíveis, num pré estado de terror surdo que, agora, invade e se instala naquele espaço, aéreo.

Isto era, para o passageiro, como que o investir da anomalia.

Uma voz - o piloto, concerteza – apela a que se mantenha a calma pois a perturbação - que não é revelada - é normal, assegura : pouco demorará a passar. Discorre, de seguida, os procedimentos de rotina a ter, acabando, enfim, por reiterar a normalidade do procedimento, a cumprir.

O passageiro constata que a temperatura na cabina subiu consideravelmente e : - faz um calor dos diabos; pensa este.

Será esta súbita alteração térmica talvez sinal do início do processo que se quer ; atingir a solução da tensão instalada ? Uma primeira estação da transformação visada ? Será que é a própria tensão, quer seja ou não justificada, que gera a mudança de temperatura que, assim, tomaria meros contornos de efeito ? Pensa em si o passageiro.

No entretanto observa à sua volta, os outros, que parecem sossegados das – dúbias - explicações da voz, que metaliza, das colunas da aparelhagem e, sem parecerem notar a brusca, notória, subida da temperatura interna da cabina, voltaram ás suas ocupações anteriores.

Melhor assim ; - pensa - pois no entanto algo se passa e a prova disso é que a hospedeira não voltou a aparecer – com toda a certeza não pretende revelar-se na ambiguidade, que não deixaria de transparecer aos olhos do passageiro perspicaz - pensa o passageiro perspicaz.

O passageiro assume-se na solidão do seu voo sem, no entanto, se dar verdadeiramente conta do processo em si proposto no mesmo, que se desenrola.

Um mais forte abalo - como que um desequilíbrio - e nesta cabina, onde a noite é já profunda, a ante câmara instala-se por forma de tensão nervosa que toma os fácies, dos passageiros, que se agitam, infantilizados, em crescendo de movimento nervoso, para lá e para cá, no corredor da cabina, como num efeito térmico particular. Olham, ansiosos, as janelas em busca da causa que toma de. desfazar o avião e que, efectivamente, instalou a constatação sistemática da anomalia.

A cada momento que passa sente-se crescer a impressão prévia da catástrofe, e o passageiro, neste processo, toma-se, cada vez mais claramente, de uma calma profunda e – talvez - resignada, que lhe expõe a aparente verdade deste funcionamento – sistemático - dos passageiros.

Surge a hospedeira – finalmente - alguns dos passageiros não podem evitar uma expressão de alívio à sua vista ; outros, porém, deixam-se tomar pela cólera e cercam de interrogações a artificiosa, que sorri, muda, como se esperasse a revolta da calma para novamente assegurar, a normalidade - mas é o que não acontece, e, após ter repetido apressadamente as indicações da voz metálica, desaparece, assim, rapidamente no nariz do avião.

À vista desta nova atitude tida da ira dos outros o passageiro revela-se finalmente à ponte que estabelece à semelhança observada. O que antes tinha resignado em si como o cariz eterno da fatalidade é, agora, iluminado em crédito da arte induzida. E desta vez é a sério ; está consolidada a ponte que permite o desencadear do processo.

O avião começa a perder altitude, rápida e visivelmente, e os passageiros, cintados aos seus assentos qual sistema espartilhado em si, mesmo, gritam, choram e rezam, enquanto o solo, lá em baixo, aproxima-se a grande velocidade.

O passageiro, sereno, sorri da sua anterior intuição, da sua actual certeza. O sistema de voo é desvelado na premeditação do funcionar que impressiona em fermentação do pânico, em artifício de poder. Enfim - pensa como que à laia de invocação que justifica – o objectivo do voo é, assim, superado nas suas expectativas e este sabor de vazio imperial - luminoso até - é a constatação da vitória e do esquecimento que é – verdadeiramente – o momento analítico da solução que se precipita.

A queda prossegue em crescendo de pânico até ao colapso anterior à “efectiva” queda do aparelho, morte.

O sistema sonoro regressa-o na “realidade”.

O voo termina com a chegada ao destino proposto e conforme aos planos iniciais do mesmo; afinal - proclama a voz impessoal da aparelhagem - tudo correu bem, dentro da normalidade, sem problemas a registar.

É que afinal apenas se tratou de uma implantação lúdica que a companhia têm por hábito proporcionar aos passageiros, ansiosos, afim de os distrair, relaxar ; e que funciona, ao mesmo tempo, como operação de construção de imagem. Como uma operação de marketing de construção do pânico.

Este fomentar da tensão foi como que uma ultrapassagem da tensão e que investiu a mesma de um estado fantasmático. Uma veste mágica que se tira e observa, que se analisa num processo necessário de realinhamento, de transformação.

Enquanto desce as escadas do aparelho o antigo passageiro é inundado do sol que desponta e afinal – pensa - aquilo que se propunha como fim nebuloso da viagem revela-se, agora, um novo irromper e sabe-o, agora, este fim é um saber que integra, que toma, transformado de transcendência, numa estação que é de (se) saber, de ser.

N.R 04