7 de julho de 2008

Artaud - O corpo humano.

O teatro é a liberdade

a liberdade a liberdade
a liberdade
sem tríade.

A inteligência é um idiota.
O génio é um idiota.
O espírito é um idiota.
A ciência não é,

ela não entra no saber,
o saber não entra na consciência,
a consciência não entra na existência,
a existência não entra no corpo.

Portanto, onde não haja coisa que sinta se como ser
( e, ao diabo, o ser é o finito )
não há senão corpo.

E porque não ser e um corpo ?
Mas se é ainda mais finito que o finito !

O teatro era uma estranha mecânica naturalista que foi instaurada para fazer calar tudo o que se imagina ser, porque isso não existe.

Passos de corpo em corpo, nem sílaba nem palavra, o gesto, atitude, som, grito, suspiro, insuflação profunda que inspira ao homem o esquecimento, esquecimento do que quer que seja que pudesse ser à volta do corpo simples.

O corpo humano.

Mas quem disse que era um ser e que existia ?
Vive.
Isto não lhe chega ?

Ganharei o nada antes de ti, deus,
dizia o corpo ao espírito, porque vivo.

E o que é um corpo ?
Chamamos corpo a tudo o que é feito sobre o modelo do homem,
que é um corpo.

E que jamais disse ou acreditou que este corpo era o finito, era o finito,
cessou já de viver,
de avançar,
até onde irá,
não de certeza na eternidade mas no tempo ilimitado.

E isto que nunca o disse.
E isto quem nunca disse até onde iria ?
Ninguém.
Até agora ninguém. O corpo humano nunca está acabado.

É ele que fala,
ele que bate,
que marcha,
que vive.

Onde está o espírito,
(se) nunca visto,
excepto para o vos fazer crer,
a vós, os corpos ?

Ele está defronte dos corpos,
à sua volta,
como uma besta,
uma doença.

É assim que o corpo é um estado ilimitado que necessita que o preservemos.
Que preservemos o seu infinito.

E o teatro foi feito para isto,
para pôr o corpo em estado de acção
activo
eficaz
efectivo

Para devolver ao corpo o seu registo
orgânico inteiro
no dinamismo e na harmonia
e para não fazer esquecer ao corpo
que é dinamite em actividade.

Isto sabe se num mundo em que o corpo humano ainda só serve:
... para comer
para dormir,
chiar,
fornicar.

Quando o corpo humano se completou no coito disse tudo pois o coito da sexualidade apenas foi feito para fazer esquecer ao corpo pelo erotismo de um orgasmo que é uma bomba.
Um torpedo enamorado

perante o qual a bomba atómica de Bikini não têm mais, e não é mais, que a ciência e a consistência
de um velho talismã regressado.

O verdadeiro teatro data de antes de Ésquilo
e em Ésquilo ele já está encrustado,
morto numa realidade que se diz fabulosa,
onde todo o idiota da história,
ciência, rito, inteligência,
espírito, família,
sociedade,
deus, génese, natividade,
está entalado, ali, em pleno hymen, a sua membrana dita bárbara pronta a ser copulada por toda a horda da humanidade.

Máquina de força eréctil de fogo,
o corpo primeiro nada conhece,
nem família, nem sociedade,
não pai, nem mãe,
nem génese assombrada
pelos esbirros das instituições
das entidades ...
ele nada conhece.
Ele erege punhos,
pés,
a língua,
os dentes.
É um baralhar
de esqueletos bárbaros
sem fim nem começo,
um pavoroso estilhaçar ardente,
e isto, é o teatro da crueldade,
que lhe importam as paixões contadas,
que importa o amor a quem tem a morte nos dentes,
a morte nos dentes.

É um teatro sem espectadores e sem cenas, unicamente com actores.
Actores que não têm frio nos olhos.
Quando tiver encontrado dez ou quinze,
então
inaugurarei
o teatro da crueldade.



Artaud, Antonin; (Le corps humain); textes écrits en 1947 ; Oeuvres