23 de outubro de 2010

Alguns devaneios da espécie.

(…)

Era a questão. Obviamente sabia do que se tratava mas, estranhamente, o seu pudor chegava ao extremo de nem sequer o escrever, chamava-lhe pudor nesses tempos.
E era no entanto, e de facto, um “objecto” dividido. Seriam então duas questões? Já por aí tinha ido - os “pontos de vista da matéria” - e diga-se, nem sequer pensava muito nisso, todo esse assunto lhe aparecia bastante esvanecido, apreendido, quer dizer, era apenas um - seja o que for um ponto vista, ou um objecto. O que sempre surgia era, então, um último movimento, cada vez mais distante, próximo, era nesses momentos que perguntava pelo tempo, talvez fosse significativo, pensou, esse aparecer das intransponíveis distâncias às portas do movimento final, como se a presença do limite lhe franqueasse as vastidões do vazio e a ocasional linha de perfuração contada, por mais que uma vez tinha pensado nessa aproximação que culminava em afastamento, ou vice-versa, tinha chegado ao mesmo lugar de sempre, os magnetizados termos do objecto, o paradoxo, claro. O tal objecto dividido, ou não, dos pontos de vista. Concluiu: tratar-se-á então, apenas, de uma efectiva desaprendizagem, uma posição sem imagem - se é que se pode assim falar da posição fundamental - quer dizer, sempre ao primeiro momento se precipita um movimento inverso, um funcionamento (de facto) que tem, como invariável resultado, uma cada vez maior definição dessa “não imagem”. O facto é que lhe não discernia o fundamento profundo, dissimulava, não lhe suspeitava um fim, antes, toda a racionalidade repugnava-se dessas conclusões e talvez daí o predomínio da frase curta, irreflectida, como se, encerrado em tal racionalidade, tivesse que forçar a passagem, o seu aparecer, mesmo que fosse assim, irreconhecível. Assim, era um estado de contínua inferência, todas as tentativas do vazio que perdiam-se sem chegar a ganhar “forma”, significação, uma direcção contrária dos mundos que perpetuava os instantes suspensos na face da agonia, daí os cíclicos vómitos das palavras, pensou, como levar os dedos à garganta e forçar uma leitura das entranhas, uma adivinhação, alguns breves instantes de definição de imagem que consumia-se em manifestações de segunda ordem, seria? Nada do que era mundo notava, como se tivera caminhado uma longa linha estreita e adivinhasse o ponto do combate. Sabia com toda a certeza do que se tratava. Interrogou-se então: o que era afinal um semelhante? Tinha avistado alguns nesse percurso e nunca se perdera em considerações de um conhecimento efectivo, talvez ali se não tratasse de conhecimento mas sim de reconhecimento, determinou - como poderia conhecer o que quer que fosse, pensou sorridente. Um estender do tempo ao “infinito”, isto, nada tinha de metafísico ou transcendental, observara, os corridos olhares do mundo em busca das aderências perdidas. Lançara-se desenfreado, tardava, talvez tivesse chegado, enfim, talvez fosse assim, talvez nada.

Surtos da matéria
em busca dos vasos receptores,
de todas as circunstâncias,
de um movimento a decidir,
no lugar,
das cisternas de alta pressão,
em desencadear de qualquer coisa,
já mais distante das palavras,
e da figura,
mas ainda um corpo,
a rebater as invasões da matéria,
como nas asas de um descontrolado voo que caísse em piques a fundo encerrado,
em todas as formas da separação,
nas grandes e coloridas palavras,
de um fogo dentro, inesgotável,
e uma chuva fresca,
que caísse o corpo incandescente,
apaziguava o consumo eléctrico num sentimento estendido que perdia os seus traços de imediata presença, distenso, metódico, refrigerado em palavras, escapava todas as alavancas: o sentido, o combate, o desejo, a extensão, a queda … todas as entradas apenas pretendiam, se alguma coisa pretendiam, uma exaustão,
todas as presenças do vazio,
nas indistintas multidões da luz,
faziam-se presentes,
como num traço melódico,
que subitamente surgisse,
na curta frase,
ao trespassar do vazio,
por certas musicadas linhas,
que ficam,
como as suspensas frases,
de um mecanismo sonâmbulo,
e era uma disposição externa agora, as curvas de uma entoação melódica que alternadamente insinua os acréscimos da (pesada) necessidade, motivos de um movimento, fácil, subtil, desnudar de uma observação, palavras, música e silêncio, em alternância do apelo simples que continua a necessária e permanente guerra, como que pensasse uma subtracção dos movimentos do embalo,
num silencioso correr,
na marca de todos os limites,
as vozes e o silêncio,
em chamadas do choque falaz,
como foram recipientes do acto que reage, vocifera, os contornos do real, as fontes de um movimento perpétuo,
não deixaria espaço,
a razão, o desígnio,
a toda uma função preenchida,
nos incógnitos viajantes,
que deixam traços de sombra,
vasos de amor e ódio,
(a passagem dessas sombras seria uma qualquer suposta visibilidade estranha),
apenas uma questão,
ficava urgente,
por acabar,
nos compassos do vazio,
que continha,
as frases soltas do desvelar.