Certo dia já lá vão uns anos estava eu sossegado e num local público a beber um café quando autenticamente do nada uma mulher lindíssima de vestido vermelho justo e sobriamente ousado era verão se aproximou de surpresa e disse:
Então, tudo bem?
Olhei-a surpreso e demoradamente era lindíssima e apesar de ter a certeza de não a conhecer lembrar-me-ia lá fui respondendo:
Sim, tudo bem, mas
Disse eu marcando bem as pausas numa tentativa vã de parecer casual, sofisticado.
Não me vais dizer que não te lembras de mim pois não?
Atirou-me a mulher lindíssima num tom jovial de sorriso aberto e franco que imediatamente desarmou a minha máscara digna e hesitei e tentei disfarçar a crescente impressão não muito acentuada de intranquilidade pois diga-se eu tinha a certeza de não conhecer aquela mulher lindíssima pois que até pelo próprio facto me lembraria dela como já disse mas por outro lado e não mentia ao pensá-lo na realidade fazia-me lembrar algo de muito vago e impreciso e no entanto familiar respondi então:
Bom, realmente, mas não, não estou a ver
Ora, sou eu.
Disse ao mesmo tempo que me dava uma cotovelada cúmplice e confesso que estava cada vez mais intrigado mas como não queria transparecê-lo o que fiz foi acender um cigarro em gestos pausados profundos e levemente meditativos como se estivesse num filme a representar um papel confiante e sofisticado e levemente e deixei passar alguns segundos marcados de um silêncio confiante e enigmático e respondi:
Eu?
A mulher lindíssima não se impressionou rigorosamente nada com a minha arte e de imediato respondeu:
Sim, eu, não precisas de fazer essas cenas, sou eu.
Mal tinha terminado de afirmar estas perturbadoras palavras deu-me uma palmada nas costas mas não daquele género de palmada que os gajos costumam dar quando estão inseguros ou com pressa mas sim uma palmada honesta nas costas e foi aí que comecei a sentir a minha dignidade seriamente ameaçada e afinal de contas até estava num local público e embora as pessoas não tivessem dado mostras de ter notado aquela familiaridade tão efusiva e eu também não tivesse reparado na reacção delas o que é facto é que reagi de uma forma um tanto ou quanto ríspida no limar do inusitado:
Olha lá, disse eu, mas por acaso andei contigo na escola, ou assim?
A mulher lindíssima nem pestanejou e de sorriso directo redarguiu:
Claro. Na escola de manhã, e à tarde à noite, ruelas e avenidas, casas brancas, povoadas de sabor, e a natureza também, brincadeiras.
Dito isto piscou-me o olho esquerdo lindíssimo e deu-me outra cotovelada desta vez mais carinhosa digamos cúmplice e fiquei como que estupefacto sem o estar pois embora por um lado as palavras que esta mulher lindíssima proferira me despertassem algumas imagens por outro despertariam em qualquer pessoa supunha mas a crescente familiaridade e confiança dela começavam a deixar-me desarmado e ela por seu turno talvez notando um indício de confusão em mim continuou:
E as cores vivas, os vermelhos, verdes luxuriantes, e azuis ultramarinos.
Entrevi então quase imediatamente a oportunidade de inverter a tendência quase humilhante do diálogo no instante e expressei-me num diletante ligeiro apertar dos lábios e linhas horizontais de testa:
Hm, estou a ver, e disse pausado, qual gauguin polinésio, ou um kandinski enquanto besta?
A mulher lindíssima nem me deixou continuar e atalhou como que repreendendo-me.
Ora, deixa-te lá dessas merdas que só te ficam é mal e ouve: os momentos desacelerados ao mais ínfimo da composição, as auras nocturnas, numa acutilante atenção, das matérias esvanecidas.
Cala-te, exclamei quase assustado.
De facto era demais e já no limiar do frenesim tentei reflectir em mim o que tais tão esotéricas revelações dispostas perante os meus ouvidos olhos e corpo todo significariam e quem era esta mulher lindíssima e o que a tinha ali trazido e enquanto desta maneira cogitava já quase completamente deposto ela recuou dois passos sempre a olhar-me e a sorrir e terna porém altiva levou a mão ao peito lindíssimo e exclamou:
Uh-Há!
Após a qual exclamação desapareceu como tinha aparecido, misteriosamente.
Fiquei para morrer ou talvez não tanto assim mas fiquei com certeza completamente despojado e não sei quantos mais minutos segundos fiquei para ali naquele local público a reflectir intensamente na significação de tão misterioso episódio o que era indubitável era que primeiro toda a minha distensa pose se tinha eclipsado num segundo e segundo que tinha efectivamente ficado num estado positivamente quase lastimável mas agarrei-me no entanto ou fiz por isso e acendi um cigarro de olhos fitos no horizonte possível daquele espaço público limitado e cheguei então rapidamente à única conclusão lógica e racional possível.
Disse comigo:
Obviamente esta mulher lindíssima de vestido vermelho justo e sobriamente ousado é verão que tão drasticamente neste meio-dia destruiu os meus frágeis alicerces e derrubou-me do periclitante pedestal era o Al Pacino disfarçado de mulher lindíssima etc. mas o que me escapa é a razão pela qual o Al Pacino assim se apresentou ao meio-dia neste local público disfarçado de mulher lindíssima para abalar desta maneira tão radical todas as minhas convicções até aqui adquiridas.
Já passaram muitos anos desde esse singular encontro e a vida bem ou mal continuou os seus turnos mas ainda hoje quando a noite é fria e o tempo lá fora ruge e aterra eu pergunto-me a mim mesmo qual a profunda mensagem que quereria transmitir-me o Al Pacino naquele meio-dia disfarçado de mulher lindíssima de vestido vermelho e justo e sobriamente ousado que era verão .
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