17 de janeiro de 2008

A Cólera de Deus (março 45)

Escutei ontem às cinco horas da tarde a história mais terrível que alguma vez foi contada no seio da humanidade.
É a história da cólera mas não creio que a humanidade a compreenda senão após a ter tornado a contar tal qual ma disseram, uma vez que não a tornei a contar tal qual a compreendi, o que quer dizer que não sei por que abominável sonho fez por chegar-me, mas a vida, onde se banha o meu sonho, não saiu ainda desta vez - onde estou, pois é a vez onde estamos que conta, e não sempre todas as outras vezes.
Quero dizer - desta vez - de onde vem esta distinção que vivemos na actualidade do tempo e do espaço e as outras que não, mas de onde vimos, e para onde, parece, iremos. Se lhes viermos, estas serão bastante mais como a vez eterna - onde estamos - do que esta outra onde nos vemos mas onde creio que na realidade não podemos verdadeiramente ser, e onde, de facto, não somos.


Mas basta de Filosofia. Trata-se aqui da história de um cão morto que me escutei contar um dia em que tinha a febre, como se, doente, fosse eu próprio responsável por ter escolhido descender no mal.
Esta história de um cão morto que dá a cólera a uma criança assemelha-se-me, estranhamente, à história do Infinito Divino que se teria deixado descender no mal até ao estado de besta morta e que, morta, teria sido maltratada(o) e despedaçada(o) pelos seres como um cão por pequenos gaiatos.
Preciso seria soltar o princípio de Deus até imiscuir-se na putrefacção cadavérica das coisas afim de o fazer cessar, pois, onde este fedor cadavérico não estiver, então, apenas estará, no plano do criado, o símbolo extremo da decomposição onde as coisas chegam quando as fomenta o infinito.
Vê-las assim é restabelecer Deus e toda a sua potência pois que o ser do cadaveroso nunca terá sido Deus, ele próprio, mas antes o cadáver expiatório do sacrificado que assume o fedor das coisas na expectativa de que o infinito, que professa, sempre lhe regresse e regresse.
Ter sofrido o mal inelutável de ser é ter evitado a Deus o ser tocado por si mas é ter admitido ao mesmo tempo que o Mal é inseparável de Deus e que Deus apenas teria descido para decompor a ideia pela sua presença e, por consequência, para a fazer cessar e mostrar por sua explosão final que o que ele é nunca teve a ver com esta ideia, antes, que esta, nada mais é do que o eterno reencontro vivido no recomeço de cada eternidade entre o sem forma e a forma, o infinito e o finito.
Ora é com esta Metafísica que as coisas foram uma vez perdidas e a Verdade é que o Principio de Deus foi ele próprio sugerido no finito quando nunca aí deveria ter entrado, e, se por principio, com efeito, ele não pôde aí entrar, e está morto antes de nascer, é porque o seu cadáver de virgem sofreu por 77 vezes sete eternidades a ver-se coabitar com um Mal que não compreende e que veio sempre, apenas, da sua adesão ao ser e da sua cobardia que abdica perante este. Não foi necessário nem ao invés soberanamente nocivo para Deus ter feito o trabalho de descender para sanear pois, na realidade, Deus não desce nas coisas e ele aí não é mais do que um sofrimento repulsivo que apenas sofre do que aceitou reprimir pois recusar reprimir o mal e curá-lo seria impedi-lo de nascer, de ser, e este, jamais viveu que não fosse do sofrimento daquele que crendo, o imaginava. Nunca existiu tempo de realização nem de ciclo para Deus. Ele é (o) eterno presente e nada têm pois que ver com o afivelar da fivela do reencontro e contacto.

para ser, morrer e ir
pois que ele é sempre e morre jamais.

O que leva as coisas (à casa de) Deus não é o Tempo ou a Lei mas a inveja e o capricho da Piedade e do Amor.

Dito isto reencontro as origens da cólera.

Não estava desperto nem adormecido quando me foi dado compreendê-las – antes, como nos sonhos, (em) que nos cremos despertos e estamos seguros de não ser duplo de um sonho - pois o acordar vos não repôs na vida.
Não sou, de todo, o ser expulso de Deus por seus pecados e que deve pela purificação regressar-lhe, antes, o irredutível do ser de Deus que deve por um lado, desembaraçar-se do ser, e por outro, desembaraçar-se de Deus.

E não quero ser o ser pão,
o pão fabrica-se e come-se.

Antonin Artaud - “Textes e lettres écrits de Rodez, 1945 »