26 de maio de 2008

“ ... e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra ... desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro. “

Gn. 11;4;7.


Quanto a Babel tenho dúvidas. Quanto às interpretações usuais do episódio, quero dizer.
Lembro me de um dia ter lido, algures, uma referência que abordava o episódio de forma mais ou menos misteriosa, como se fora uma espécie de segredo bem guardado por algumas confrarias de sábios eruditos, ou que, seriam, estes sábios eruditos, pelo menos relutantes no tecer de qualquer tipo de comentário ou consideração em relação ao dito episódio.

A “explicação” do episódio, a sua significação diria, não se encontrará propriamente, suponho, nas conclusões racionais de queda, dispersão e confusão das línguas como consequência de um projecto quimérico de produção de linguagem objecto - muito embora estas conclusões não deixem de ser “verdadeiras” e legítimas - mas sim, como qualquer mito aliás, numa marcação “psicológica” caracterizada, neste caso, por um efeito que teria surgido no autor em circunstâncias nas quais se dedicaria a produções, progressões, ou projecções a partir da, ou na, linguagem. Este efeito, que suponho bem conhecido por quem quer que se dedique à criação de linguagens artificiais a partir da manipulação de nomes será, assim, ou uma estação fragmentada no percurso de acesso a esse objecto idealizado ou, então, o atingir do próprio objecto perseguido no dito processo.

Claro que este é um ponto de vista individual, limitado, e, portanto, “verdadeiro”.

As conclusões racionais que referi e que geralmente se tiram do episódio de Babel apontam, geralmente, para um momento de passagem, como um efeito ou consequência que teria transportado o Homem a um novo enquadramento, a uma nova organização, e Babel seria, neste sentido, o “símbolo” de um qualquer radical livre que teria gerado o primordial salto quântico religioso, ou cultural, que culminaria nos mitológicos impérios do bronze ; ou seja, a passagem de uma rede social assente no sangue e no parentesco, do tipo tribal, a uma outra do território económico, das suas relações de poder e do estado imperial..

Após Babel nada seria como antes.

Este salto, poderia pensá-lo como consequência do encher das condições estruturais do neolítico e consequente surgir do tédio neolítico, ou da possibilidade daí resultante. O pôr da possibilidade de mais nas longas noites do tédio neolítico reflectido.
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E falam, estas interpretações que referi, talvez, da tentativa de construção da primeira linguagem artificial, talvez, a escrita, talvez, a astronomia, talvez, o conceito de tempo maquinal, talvez, até, a própria noção de indivíduo, talvez.

Do que se fala com toda a certeza, digo eu, é da “invenção” do trabalho organizado em função de um “nome”, de uma “obra”, de um imperador ou de um deus; de um “ideal” ou noção de infinito. Da civilização diria.

A partir desta “obra”, ou “forma”, a linguagem é já a do território económico e da organização social do estado, ou dos estados, mais propriamente, pois uma das mais usuais (interpretações) fala-nos da confusão que se seguiu à intervenção divina como de uma fragmentação desta linguagem criada em múltiplas outras linguagens técnicas, artificiais, resultantes da divisão do trabalho e da sua organização com vista à prossecução da “obra”. Um nascer das várias confrarias de artífices que teriam estado empenhados na obra, herméticas entre si, e cada uma delas apoiada na sua própria linguagem objecto.

E mais, do irromper de uma casta sacerdotal guardiã da linguagem do tempo maquinal, da burocracia. Como se a noção de infinito se tomasse aqui e se pusesse como ponto de vista da estrutura.

E este ponto de vista especular que surge, assinala, talvez, o próprio nascimento do Mito enquanto notação de um trajecto (psicografia), por um lado, e fundamento (cultural) da estrutura por outro. O Mito, que foi o trajecto percorrido desde a anterior organização social até esta nova é, agora, no acto de ser notado na linguagem, invertido no seu sentido que passa a ser a conservação da nova estrutura e dos privilégios linguísticos das suas emergentes castas. Esta nova organização toma-o - o Mito – nesta notação que lhe inverte o sentido e coloca-o como mecanismo de condicionamento e controle mental da matéria humana. A “cultura”.

Este mecanismo especular que têm, talvez, a sua origem e contrapartida mais remota nas fogueiras da deusa do neolítico vêm, aqui, ao tomar-se espelho, dar-se à luz do desejo, assumir a linguagem do “deve ser” civilizado – que virá a culminar, alguns milénios à frente na bem actual estrutura da má consciência - e a tornar-se, assim, o garante (oculto) maquinal de uma representação festiva que têm, como fundamento e objectivo, o conservar de um ilusão.

Ilusão esta que é a imagem do estado, da lei artificial.

Após tudo isto chego, finalmente, ao tema a que me propunha de início, e torno a perguntar-me : quanto a Babel ?

Parafraseando Bachelard diria que : a imagem é o sujeito, em nós, do verbo imaginar e que esta prestar se á aos exercícios de imaginação aos quais estaremos mais predispostos, ou seja, sobre os resquícios formais com maior capacidade de se perdurarem, ou intrometerem, na consciência e, assim, sofrerem a acção explosiva, ou desintegradora, do imaginário.

Como se a intrusão do verbo (imaginar) no campo exclusivo do nome (Babel) viesse a gerar o paradoxo, a queda e a confusão. Talvez daqui a renitência dos sábios eruditos em comentar a significação do episódio bíblico, ou seja ; não será sem custo que um desses eruditos se propõe atingir Babel e o minimizar desse efeito de desencadeamento, ou de confusão, passará, talvez, pelo anonimato em relação à passagem a Babel. O produto dali, bem, o produto dali será o culminar da linguagem conceptual, os sistemas, a ciência, as linguagens formais.

E talvez este culminar formal e consequente confusão se tenha antes à “sombra de Babel”, como fora, “este nome”, exemplo transfinito ou protótipo transfinito e, aqui, a confusão estaria não em Babel, mas, antes, no momento imediatamente anterior a Babel ou seja, no limbo de Babel. A confusão seria, aqui, como que preâmbulo de Babel : o “sítio” onde as linguagens seriam efectivamente confundidas - ou co fu (n) di da s - e onde apenas ficaria a própria “matéria” a impressionar e seria, neste caso, ao transpor este “limite” entre os “dois” estados - antes de Babel e Babel - que estaria a explosão do objecto em miríades de objectos.

A falar verdadeiramente será até outra coisa, “bem pior”, mas enfim, (n)aquele momento em que a “matéria” adquire a abertura total à impressão e porque ainda não atingiu Babel, e ainda é sujeita a impressões de resquícios formais que vogam nesse limbo, nesse momento é uma “matéria” ainda e completamente vulnerável.

“Pensava às vezes que estava prestes a falar, mas o silêncio continuou ... “ H.Bloom.

Bom, sem dúvida que Babel é uma imagem forte e o seu quase culminar formal em linguagem caótica, em fusão das linguagens num momento, em confusão – “confusão” esta, aliás, profusamente notada e “enquadrada” pela cabala askhenazi – é, por fim, dissolução desta e irromper, da “confusão”, em esclarecimento que é ausência de linguagem.

“ Depois de cavalgar três dias e três noites chegou ao lugar, mas decidiu que não era sítio onde pudesse chegar.”
H.Bloom.

E claro que aqui já não se “fala” da vulgar confusio.


“Os espíritos falam todos entre si uma linguagem sensual, não precisam de outra linguagem, porque a sua linguagem é a linguagem da natureza.”
J.Böhme.

Em verdade em verdade sorrio,
a plasticidade absoluta é ninguém.